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EU E OUTRAS POESIAS

Augusto dos Anjos
 

 

Monólogo de uma sombra

 

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

 

A simbiose das coisas me equilibra.

Em minha ignota mônada, ampla, vibra

A alma dos movimentos rotatórios...

E é de mim que decorrem, simultâneas,

A saúde das forças subterrâneas

E a morbidez dos seres ilusórios!

 

Pairando acima dos mundanos tetos,

Não conheço o acidente da Senectus

-- Esta universitária sanguessuga

Que produz, sem dispêndio algum de vírus,

O amarelecimento do papirus

E a miséria anatômica da ruga!

 

Na existência social, possuo uma arma

-- O metafisicismo de Abidarma --

E trago, sem bramânicas tesouras,

Como um dorso de azêmola passiva,

A solidariedade subjetiva

De todas as espécies sofredoras.

 

Como um pouco de saliva quotidiana

Mostro meu nojo à Natureza Humana.

A podridão me serve de Evangelho...

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques

E o animal inferior que urra nos bosques

É com certeza meu irmão mais velho!

 

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,

Amarguradamente se me antolha,

À luz do americano plenilúnio,

Na alma crepuscular de minha raça

Como uma vocação para a Desgraça

E um tropismo ancestral para o Infortúnio.

 

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,

Trazendo no deserto das idéias

O desespero endêmico do inferno,

Com a cara hirta, tatuada de fuligens

Esse mineiro doido das origens,

Que se chama o Filósofo Moderno!

 

Quis compreender, quebrando estéreis normas,

A vida fenomênica das Formas,

Que, iguais a fogos passageiros, luzem.

E apenas encontrou na idéia gasta,

O horror dessa mecânica nefasta,

A que todas as coisas se reduzem!

 

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,

Sobre a esteira sarcófaga das pestes

A mosrtrar, já nos últimos momentos,

Como quem se submete a uma charqueada,

Ao clarão tropical da luz danada,

O espólio dos seus dedos peçonhentos.

 

Tal a finalidade dos estames!

Mas ele viverá, rotos os liames

Dessa estranguladora lei que aperta

Todos os agregados perecíveis,

Nas eterizações indefiníveis

Da energia intra-atômica liberta!

 

Será calor, causa ubíqua de gozo,

Raio X, magnetismo misterioso,

Quimiotaxia, ondulação aérea,

Fonte de repulsões e de prazeres,

Sonoridade potencial dos seres,

Estrangulada dentro da matéria!

 

E o que ele foi: clavículas, abdômen,

O coração, a boca, em síntese, o Homem,

-- Engrenagem de vísceras vulgares --

Os dedos carregados de peçonha,

Tudo coube na lógica medonha

Dos apodrecimentos musculares.

 

A desarrumação dos intestinos

Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos

Dentro daquela massa que o húmus come,

Numa glutoneria hedionda, brincam,

Como as cadelas que as dentuças trincam

No espasmo fisiológico da fome.

 

É uma trágica festa emocionante!

A bacteriologia inventariante

Toma conta do corpo que apodrece...

E até os membros da família engulham,

Vendo as larvas malignas que se embrulham

No cadáver malsão, fazendo um s.

 

E foi então para isto que esse doudo

Estragou o vibrátil plasma todo,

À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...

Num suicídio graduado, consumir-se,

E após tantas vigílias, reduzir-se

À herança miserável dos micróbios!

 

Estoutro agora é o sátiro peralta

Que o sensualismo sodomita exalta,

Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...

Como que, em suas clélulas vilíssimas,

Há estratificações requintadíssimas

De uma animalidade sem castigo.

 

Brancas bacantes bêbadas o beijam.

Suas artérias hírcicas latejam,

Sentindo o odor das carnações abstêmias,

E à noite, vai gozar, ébrio de vício,

No sombrio bazer domeretrício,

O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

 

No horror de sua anômala nevrose,

Toda a sensualidade da simbiose,

Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,

Como no babilônico sansara,

Lembra a fome incoercível que escancara

A mucosa carnívora dos lobos.

 

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.

Negra paixão congênita, bastarda,

Do seu zooplasma ofídico resulta...

E explode, igual à luz que o ar acomete,

Com a veemência mavórtica do aríete

E os arremessos de uma catapulta.

 

Mas muitas vezes, quando a noite avança,

Hirto, observa através a tênue trança

Dos filamentos fluídicos de um halo

A destra descarnada de um duende,

Que tateando nas tênebras, se estende

Dentro da noite má, para agarrá-lo!

 

Cresce-lhe a intracefálica tortura,

E de su’alma na caverna escura,

Fazendo ultra-epiléticos esforços,

Acorda, com os candeeiros apagados,

Numa coreografia de danados,

A família alarmada dos remorsos.

 

É o despertar de um povo subterrâneo!

É a fauna cavernícola do crânio

-- Macbeths da patológica vigília,

Mostrando, em rembrandtescas telas várias,

As incestuosidades sangüinárias

Que ele tem praticado na família.

 

As alucinações tácteis pululam.

Sente que megatérios o estrangulam...

A asa negra das moscas o horroriza;

E autopsiando a amaríssima existência

Encontra um cancro assíduo na consciência

E três manchas de sangue na camisa!

 

Míngua-se o combustível da lanterna

E a consciência do sátiro se inferna,

Reconhecendo, bêbedo de sono,

Na própria ânsia dionísica do gozo,

Essa necessidade de horroroso,

Que é talvez propriedade do carbono!

 

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova

De que a dor como um dartro se renova,

Quando o prazer barbaramente a ataca...

Assim também, observa a ciência crua,

Dentro da elipse ignívoma da lua

A realidade de uma esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,

Abranda as rochas rígidas, torna água

Todo o fogo telúrico profundo

E reduz, sem que, entanto, a desintegre,

À condição de uma planície alegre,

A aspereza orográfica do mundo!

 

Provo desta maneira ao mundo odiento

Pelas grandes razões do sentimento,

Sem os métodos da abstrusa ciência fria

E os trovões gritadores da dialética,

Que a mais alta expressãoda dor estética

Consiste essencialmente na alegria.

 

Continua o martírio das criaturas:

-- O homicídio nas vielas mais escuras,

-- O ferido que a hostil gleba atra escarva,

-- O último solilóquio dos suicidas --

E eu sinto a dor de todas essas vidas

Em minha vida anônima de larva!”

 

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,

Da luz da lua aos pálidos venábulos,

Na ânsa de um nervosíssimo entusiasmo,

Julgava ouvir monótonas corujas,

Executando, entre daveiras sujas,

A orquestra arrepiadora do sarcasmo!

 

Era a elegia panteísta do Universo,

Na produção do sangue humano imenso,

Prostituído talvez, em suas bases...

Era a canção da Natureza exausta,

Chorando e rindo na ironia infausta

Da incoerência infernal daquelas frases.

 

E o turbilhão de tais fonemas acres

Trovejando grandíloquos massacres,

Há-de ferir-me as auditivas portas,

até que minha efêmera cabeça,

Reverta à quietação datrava espessa

E à palidez das fotosferas mortas!

 

 

 

Agonia de um filósofo

 

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto

Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...

O Inconsciente me assombra e eu nele rolo

Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

 

Assisto agora à morte de um inseto!...

Ah! todos os fenômenos do solo

Parecem realizar de pólo a pólo

O ideal do Anaximandro de Mileto!

 

No hierático areópago heterogêneo

Das idéias, percorro como um gênio

Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

 

Rasgo dos mundos o velário espesso;

E em tudo igual a Goethe, reconheço

O império da substância universal!

 

 

 

O Morcego

 

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:

Na bruta ardência orgânica dasede,

Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

 

“Vou mandar levantar outra parede...”

-- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho

E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,

Circularmente sobre a minha rede!

 

Pego de um pau. Esforços faço. Chego

A tocá-lo. Minh’alma se concentra.

Que ventre produziu tão feio parto?!

 

A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!

 

 

 

Psicologia de um vencido

 

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênese da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

 

Produndissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

 

Já o verme -- este operário das ruínas --

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

 

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

 

 

 

A Idéia

 

De onde ela vem?! De que matéria bruta

Vem essa luz que sobre as nebulosas

Cai de incógnitas criptas misteriosas

Como as estalactites duma gruta?!

 

Vem da psicogenética e alta luta

Do feixe de moléculas nervosas,

Que, em desintegrações maravilhosas,

Delibera, e depois, quer e executa!

 

Vem do encéfalo absconso que a constringe,

Chega em seguida às cordas da laringe,

Tísica, tênue, mínima, raquítica...

 

Quebra a força centrípeta que a amarra,

Mas, de repente, e quase morta, esbarra

No molambo da língua paralítica!

 

 

 

O Lázaro da pátria

 

Filho podre de antigos Goitacases,

Em qualquer parte onde a cabeça ponha,

Deixa circunferências de peçonha,

Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

 

Todos os cinocéfalos vorazes

Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,

Sente no tórax a pressão medonha

Do bruto embate férreo das tenazes.

 

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos

A hedionda elefantíase dos dedos

Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

 

Riem as meretrizes no Cassino,

E o Lázaro caminha em seu destino

Para um fim que ele mesmo desconhece!

 

 

 

Idealização da humanidade futura

 

Rugia nos meus centros cerebrais

A multidão dos séculos futuros

-- Homens que a herança de ímpetos impuros

Tornara etnicamente irracionais!

 

Não sei que livro, em letras garrafais,

Meus olhos liam! No húmus dos monturos,

Realizavam-se os partos mais obscuros,

Dentre as genealogias animais!

 

Como quem esmigalha protozoários

Meti todos os dedos mercenários

Na consciência daquela multidão...

 

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,

Somente achei moléculas de lama

E a mosca alegre da putrefação!

 

 

 

Soneto

 

Ao meu primeiro filho nascidomorto com 7 meses incompletos.

2 fevereiro 1911.

 

Agregado infeliz de sangue e cal,

Fruto rubro de carne agonizante,

Filho da grande força fecundante

De minha brônzea trama neuronial,

 

Que poder embriológico fatal

Destruiu, com a sinergia de um gigante,

Em tua morfogênese de infante

A minha morfogênese ancestral?!

 

Porção de minha plásmica substância,

Em que lugar irás passar a infância,

Tragicamente  anônimo, a feder?!

 

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,

Panteisticamente dissolvido

Na noumenalidade do NÃO SER!

 

 

 

Versos a um cão

 

Que força pôde adstrita e embriões informes,

Tua garganta estúpida arrancar

Do segredo da célula ovular

Para latir nas solidões enormes?

 

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,

Suficientíssima é, para provar

A incógnita alma, avoenga e elementar

Dos teus antepassados vemiformes.

 

Cão! -- Alma do inferior rapsodo errante!

Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a

A escala dos latidos ancestrais...

 

E irás assim, pelos séculos adiante,

Latindo a esquisitíssima prosódia

Da angústia hereditária dos teus pais!

 

 

 

O Deus-Verme

 

Fator universal do transformismo.

Filho da teleológica matéria,

Na superabundância ou na miséria,

Verme -- é o seu nome obscuro de batismo.

 

Jamais emprega o acérrimo exorcismo

Em sua diária ocupação funérea,

E vive em contubérnio com a bactéria,

Livre das roupas do antropomorfismo.

 

Almoça a podridão das drupas agras,

Janta hidrópicos, rói vísceras magras

E dos defuntos novos incha a mão...

 

Ah! Para ele é que a carne podre fica,

E no inventário da matéria rica

Cabe aos seus filhos a maior porção!

 

 

 

Debaixo do tamarindo

 

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,

Como uma vela fúnebre de cera,

Chorei bilhões de vezes com a canseira

De inexorabilíssimos trabalhos!

 

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,

Guarda, como uma caixa derradeira,

O passado da Flora Brasileira

E a paleontologia dos Carvalhos!

 

Quando pararem todos os relógios

De minha vida e a voz dos necrológios

Gritar nos noticiários que eu morri,

 

Voltando à pátria da homogeneidade,

Abraçada com a própria Eternidade

A minha sombra há de ficar aqui!

 

 

 

As cismas do destino

 

I

 

Recife, Ponte Buarque de Macedo.

Eu, indo em direção à casa do Agra,

Assombrado com a minha sombra magra,

Pensava no Destino, e tinha medo!

 

Na austera abóbada alta o fósforo alvo

Das estrelas luzia... O calçamento

Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,

Copiava a polidez de um crânio alvo.

 

Lembro-me bem. A ponte era comprida,

E a minha sombra enorme enchia a ponte,

Como uma pele de rinoceronte

Estendida por toda a minha vida!

 

A noite fecundava o ovo dos vícios

Animais. Do carvão da treva imensa

Caía um ar danado de doença

Sobre a cara geral dos edifícios!

 

Tal uma horda feroz de cães famintos,

Atravessando uma estação deserta,

Uivava dentro do eu, com a boca aberta,

A matilha espantada dos instintos!

 

Era como se, na alma da cidade,

Profundamente lúbrica e revolta,

Mostrando as carnes, uma besta solta

Soltasse o berro da animalidade.

 

E aprofundando o raciocínio obscuro,

Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,

O trabalho genésico dos sexos,

Fazendo à noite os homens do Futuro.

 

Livres de microscópios e escalpelos,

Dançavam, parodiando saraus cínicos,

Bilhões de centrossomas apolínicos

Na câmara promíscua do vitellus.

 

Mas, a irritar-me os globos oculares,

Apregoando e alardeando a cor nojenta,

Fetos magros, ainda na placenta,

Estendiam-me as mãos rudimentares!

 

Mostravam-me o apriorismo incognoscível

Dessa fatalidade igualitária,

Que fez minha família originária

Do antro daquela fábrica terrível!

 

A corrente atmosférica mais forte

Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro,

Julgava eu ver o fúnebre candeeiro

Que há de me alumiar na hora da morte.

 

Ninguém compreendia o meu soluço,

Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,

O ventobravo me atirava flechas

E aplicações hiemais de gelo russo.

 

A vingança dos mundos astronômicos

Enviava à terra extraordinária faca,

Posta em rija adesão de goma laca

Sobre os meus elementos anatômicos.

 

Ah! Com certeza, Deus me castigava!

Por toda a parte, como um réu confesso,

Havia um juiz que lia o meu processo

E uma forca especial que me esperava!

 

Mas o vento cessara por instantes

Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco

Abafava-me o peito arqueado e porco

Num núcleo de substâncias abrasantes.

 

É bem possível que eu umdia cegue.

No ardor desta letal tórrida zona,

A cor do sangue é a cor que me impressiona

E a que mais neste mundo me persegue!

 

Essa obsessão cromática me abate.

Não sei por que me vêm sempre à lembrança

O estômago esfaqueado de uma criança

E um pedaço de víscera escarlate.

 

Quisera qualquer coisa provisória

Que a minha cerebral caverna entrasse,

E até ao fim, cortasse e recortasse

A faculdade aziaga da memória.

 

Na ascensão barométrica da calma,

Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,

Que uma população doente do peito

Tossia sem remédio na minh’alma!

 

E o cuspo que essa hereditária tosse

Golfava, à guisa de ácido resíduo,

Não era o cuspo só de um indivíduo

Minado pela tísica precoce.

 

Não! Não era o meu cuspo, com certeza

Era a expectoração pútrida e crassa

Dos brônquios pulmorares de uma raça

Que violou as leis da Natureza!

 

Era antes uma tosse ubíqua, estranha,

Igual ao ruído de um calhau redondo

Arremessado no apogeu do estrondo,

Pelos fundibulários da montanha!

 

E a saliva daqueles infelizes

Inchava, em minha boca, de tal arte,

Que eu, para não cuspir  por toda a parte,

Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

 

Na alta alucinação de minhas cismas

O microcosmos líquido da gota

Tinha a abundância de uma artéria rota,

Arrebatada pelos aneurismas.

 

Chegou-me o estado máximo da mágoa!

Duas, três, quatro, cinco, seis e sete

Vezes que eu me furei com um canivete,

A hemoglobina vinha cheia de água!

 

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,

Sob a forma de mínimas camândulas,

Benditas sejam todas essas glândulas,

Que,  quotidianamente, te segregam!

 

Escarrar de um abismo noutro abismo,

Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,

Há mais filosofia neste escarro

Do que em toda a moral do Cristianismo!

 

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam

Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,

Jamais exprimiria o acérrimo asco

Que os canalhas do mundo me provocam!

 

II

 

Foi no horror dessa noite tão funérea

Que eu descobri, maior talvez que Vinci,

Com a força visualística do lince,

A falta de unidade na matéria!

 

Os esqueletos desarticulados,

Livres do acre fedor das carnes mortas,

Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,

Numa dança de números quebrados!

 

Todas as divindades malfazejas,

Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,

Imitando o barulho dos engasgos,

Davam pancadas no adro das igrejas.

 

Nessa hora de monólogos sublimes,

A companhia dos ladrões da noite,

Buscando uma taverna que os açoite,

Vai pela escuridão pensando crimes.

 

Perpetravam-se os atos mais funestos,

E o luar, da cor de um doente de icterícia,

Iluminava, a rir, sem pudicícia,

A camisa vermelha dos incestos.

 

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,

Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,

Um sugestionador olho, ali posto

De propósito, para hipnotizar-me!

 

Em tudo, então, meus olhos distinguiram

Da miniatura singular de uma aspa,

À anatomia mínima da caspa,

Embriões de mundos que não progrediram!

 

Ser cachorro! Ganir incompreendidos

Verbos! Querer dizer-nos que não finge,

E a palavra embrulhar-se na laringe,

Escapando-se apenas em latidos!

 

Despir a putrescível forma tosca,

Na atra dissoluçào que tudo inverte,

Deixar cair sobre a barriga inerte

O apetite necrófago da mosca!

 

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,

Acho-a nesse interior duelo secreto

Entre a ânsia de um vocábulo completo

E uma expressão que não chegou à língua!

 

Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,

Nos antiperistálticos abalos

Que produzem nos bois e nos cavalos

A contração dos gritos instintivos!

 

Tempo viria, em que,  daquele horrendo

Caos de corpos orgânicos disformes

Rebentariam cérebros enormes,

Como bolhas febris de água, fervendo!

 

Nessa época que os sábios não ensinam,

A pedra dura, os montes argilosos

Criariam feixes de cordões nervosos

E o neuroplasma dos que raciocinam!

 

Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as

À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-o,

E o meu sonho crescia nosilâncio,

Maior que as epopéias carolíngias!

 

Era a revolta trágica dos tipos

Ontogênicos mais elementares,

Desde os foraminíferos dos mares

À grei liliputiana dos pólipos.

 

Todos os personagens da tragédia,

Cansados de viver na paz de Buda,

Pareciam pedir com a boca muda

A ganglionária célula intermédia.

 

A planta que a canícula ígnea torra,

E as coisas inorgânicas mais nulas

Apregoavam encéfalos, medulas

Na alegria guerreira da desforra!

 

Os protistas e o obscuro acervo rijo

Dos espongiários e dos infusórios

Recebiam com os seus órgãos sensóricos

O triunfo emocional do regozijo.

 

E apesar de já não ser assim tão tarde,

Aquela humanidade parasita,

Como um bicho inferior, berrava, aflita,

No meu temperamento de covarde!

 

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso

Vi que, igual a um amniota subterrâneo,

jazia atravassada no meu crânio

A intercessão fatídica do atraso!

 

A hipótese genial do microzima

Me estrangulava o pensamento guapo,

E eu me encolhia todo como um sapo

Que tem um peso incômodo por cima!

 

Nas agonias do delirium-tremens,

Os bêbedos alvares que me olhavam,

Com os copos cheios esterilizavam

A substância prolífica dos sêmens!

 

Enterravam as mãos dentro das goelas,

E sacudidos de um tremor indômito

Expeliam, na dor forte do vômito,

Um conjunto de gosmas amarelas.

 

Iam depois dormir nos lupanares

Onde, na glória da concupiscência,

Depositavam quase sem consciência

As derradeiras forças musculares.

 

Fabricavam destarte os bastodermas,

Em cujo repugnante receptáculo

Minha perscrutação via o espetáculo

De uma progênie idiota de palermas.

 

Prostituição ou outro qualquer nome,

por tua causa, embora o homem te aceite,

É que as mulheres ruins ficam sem leite

E os meninos sem pai morrem de fome!

 

Por que há de haver aqui tantos enterros?

Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata...

Há o malvado carbúnculo que mata

A sociedade infante dos bezerros!

 

Quantas moças que o túmulo reclama!

E após a podridão de tantas moças,

Os porcos espojando-se nas poças

Da virgindade reduzida à lama!

 

Morte, ponto final da última cena,

Forma difusa da matéria embele,

Minha filosofia te repele,

Meu raciocínio enorme te condena!

 

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,

Rolam sem eficácia os amuletos,

Oh! Senhora dos nossos esqueletos

E das caveiras diárias que fabricas!

 

E eu desejava ter, numa ânsia rara,

Ao pensar nas pessoas que perdera,

A inconsciência das máscaras de cera

Que a gente prega, como um cordão, na cara!

 

Era um sonho ladrão de submergir-me

Na vida universal,e, em tudo imerso,

Fazer da parte abstrada do Universo,

Minha morada equilibrada e firme!

 

Nisto, pior que o remorso do assassino,

Reboou, tal qual, num fundo de caverna,

Numa impressionadora voz interna,

o eco particular do meu Destino;

 

III

 

“Homem! por mais que a Idéia deintegres,

Nessas perquisições que não têm pausa,

Jamais, magro homem, saberás a causa

De todos os fenômenos alegres!

 

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas

A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,

Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)

O conteúdo das lágrimas hediondas.

 

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas

lugar do Cosmos, onde a dor infrene

É feita como é feito o querosene

Nos recôncavos úmidos das hulhas!

 

Porque, para que a Dor perscrutes, fora

Mister que, não como és, em síntese, antes

Fosses, a refletir teus semelhantes,

A própria humanidade sofredora!

 

A universal complexidade é que Ela

Compreende. E se, por vezes, se divide,

Mesmo ainda assim, seu todo não Residencia

No quociente isolado da parcela!

 

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!

Das papilas nervosas que há nos tatos

Veio e vai desde os tempos mais transatos

Para outros tempos que hão de vir ainda!

 

Como o machucamento das insônias

Te estraga, quando toda a estuada Idéia

Dás ao sôfrego estudo da ninféia

E de outras plantas dicotiledôneas!

 

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua

Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;

A formação molecular da mirra,

o cordeiro simbólico da Páscoa;

 

As rebeladas cóleras que rugem

No homem civilizado, e a ele se prendem

Como às pulseiras que os mascates vendem

A aderência teimosa da ferrugem;

 

O orbe feraz que bastos jojos acres

Produz’a rebelião que na batalha,

Deixa os homens deitados, sem mortalha,

Na sangueira concreta dos massacres;

 

Os sanguinolentíssimos chicotes

Da hemorragia; as nódoas mais espessas,

O achatamento ignóbil das cabeças,

Que ainda degrada os povos hotentotes;

 

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo

Entra, à espera que a mansa vítima o entre,

-- Tudo que gera no materno ventre

A causa fisiológica do nojo;

 

As pálpebras inchadas na vigília,

As aves moças que perderam a asa,

O fogão apagado de uma casa,

Onde morreu o chefe da família;

 

O trem particular que um corpo arrasta

Sinistramente pela via férrea,

A cristalização da massa térrea,

O tecido da roupa que se gasta;

 

A água arbitrária que hiulcos caules grossos

Carrega e come; as negras formas feias

Dos aracnídeos e das centopéias,

O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

 

As projeções flamívomas que ofuscam,

Como uma pincelada rembrandtesca,

A sensação que uma coalhada fresca

Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

 

O antagonismo de Tífon e Osíris,

O homem grande oprimindo o homem pequeno

A lua falsa de um parasseleno,

A mentira meteórica do arco-íris;

 

Os terremotos que, abalando os solos,

Lembram paióis de pólvora explodindo,

A rotação dos fluidos produzindo

A depressão geológica dos pólos;

 

O instinto de procriar, a ânsia legítima

Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,

O juramento dos guerreiros priscos

Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

 

As diferenciações que o psicoplasma

Humano sofre da mania mística,

A pesada opressão característica

Dos dez minutos de um acesso de asma;

 

E, (conquanto contra isto ódios regougues)

A utilidade fúnebre da corda

Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,

À morte desgraçada dos açougues...

 

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra

Forma a complicação desse barulho

Travado entre o dragão do humano orgulho

E as forças inorgânicas da terra!

 

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!

Ignoto é o gérmem dessa força ativa

Que engendra, em cada célula passiva,

A heterogeneidade das mudanças!

 

Poeta, feito malsão, criado com os sucos

De um leite mau, carnívoro asqueroso,

Gerado no atavismo monstruoso

Da alma desordenada dos malucos;

 

Última das criaturasinferiores

Governada por átomos mesquinhos,

Teu pé mata a uberdade dos caminhos

E esteriliza os ventres geradores!

 

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,

Amálogo é ao que, negro e a seu turno,

Traz o ávido filóstomo noturno

Ao sangue dos mamíferos vorazes!

 

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes

A perfeição dos seres existentes,

Hás de mostrar a cárie dos teus dentes

Na anatomia horrenda dos detalhes!

 

O Espaço -- esta abstração spencereana

Que abrange as relações de coexistência

E só! Não tem nenhuma dependência

Com as vértebras mortais da espécie humana!

 

As radiantes elipses que as estrelas

Traçam, e ao espectador falsas se antolham

São verdades de luz que os homens olham

Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

 

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes

Que essa mão, de esqueléticas falanges,

Dentro dessa água que com a vista abranges,

Também prova o princípio de Arquimedes!

 

A fadiga feroz que te esbordoa

Há de deixar-te essa medonha marca,

Que, nos corpos inchados de anasarca,

Deixam os dedos de qualquer pessoa!

 

Nem terás no trabalho que tiveste

A misericordiosa toalha amiga,

Que afaga os homens doentes de bexiga

E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

 

Quando chegar depois a hora tranqüila,

Tu serás arrastado, na carreira,

Como um cepo inconsciente de madeira

Na evolução orgânica da argila!

 

Um dia comparado com um milênio

Seja, pois, o teu último Evangelho...

É a evolução do novo para o velho

E do homogêneo para o heterogêneo!

 

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo

A apodrecer!... És poeira e embalde vibras!

O corvo que comer as tuas fibras

Há de achar nelas um sabor amargo!”

 

IV

 

Calou-se a voz. A noite era funesta.

E os queixos, a exibir trismos danados,

Eu puxava os cabelos desgrenhados

Como o Rei Lear, no meio da floresta!

 

Maldizia, com apóstrofes veementes,

No estentor de mil línguas insurretas,

O convencionalismo das Pandetas

E os textos maus dos códigos recentes!

 

Minha imaginação atormentada

Paria absurdos... Como diabos juntos,

perseguiam-me os olhos dos defuntos

Com a carne da esclerótica esverdeada.

 

Secara a clorofila das lavouras.

Igual aos sustenidos de uma endecha

Vinha-me às cordas glóticas a queixa

Das coletividades sofredoras.

 

O mundo resignava-se invertido

Nas forças principais do seu trabalho...

A gravidade era um princípio falho,

A análise espectral tinha mentido!

 

O Estado, a Associação, os Municípios

Eram mortos. De todo aquele mundo

Restava um mecanismo moribundo

E uma teleologia sem princípios.

 

Eu queria correr, ir para o inferno,

Para que, da psique no oculto jogo,

Morressem sufocadas pelo fogo

Todas as impressões do mundo externo!

 

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...

Na Natureza, uma mulher de luto

Cantava, espiando as árvores sem fruto.

A canção prostituta do ludíbrio.

 

 

 

Budismo moderno

 

Tome, Dr., esta tesoura, e...corte

Minha singularíssima pessoa.

Que importa a mim que a bicharia roa

Todo o meu coração, depois da morte?!

 

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!

Também, das diatomáceas da lagoa

A criptógama cápsula se esbroa

Ao contato de bronca destra forte!

 

Dissolva-se, portanto, minha vida

Igualmente a uma célula caída

Na aberração de um óvulo infecundo;

 

Mas o agregado abstrato das saudades

Fique batendo nas perpétuas grades

Do último verso que eu fizer no mundo!

 

 

 

Sonho de um monista

 

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo

Viajávamos, com uma ânsia sibarita,

por toda a pro-dinâmica infinita,

Na inconsciência de um zoófito tranqüilo.

 

A verdade espantosa do Protilo

Me aterrava, mas dentro da alma aflita

Via Deus -- essa mônada esquisita --

Coordenando e animando tudo aquilo!

 

E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,

Na guturalidade do meu brado,

Alheio ao velho cálculo dos dias,

 

Como um pagão no altar de Proserpina,

A energia intracósmica divina

Que é o pai e é a mãe das outras energias!

 

 

 

Solitário

 

Como um fantasma que se refugia

Na solidão da natureza morta,

Por trás dos ermos túmulos, um dia,

Eu fui refugiar-me à tua porta!

 

Fazia frio e o frio que fazia

Não era esse que a carne nos contorta...

Cortava assim como em carniçaria

O aço das facas incisivas corta!

 

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!

E eu saí, como quem tudo repele,

-- Velho caixão a carregar destroços --

 

Levando apenas na tumba carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos!

 

 

 

Mater Originalis

 

Forma vermicular desconhecida

Que estacionaste, mísera e mofina,

Como quase impalpável gelatina,

Nos estados prodrômicos da vida;

 

O hierofante que leu a minha sina

Ignorante é de que és, talvez, nascida

Dessa homogeneidade indefinida

Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

 

Nenhuma ignota união ou nenhum sexo

À contingência orgânica do sexo

A tua estacionária alma prendeu...

 

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,

Oh! Mãe original das outras formas,

A minha forma lúgubre nasceu!

 

 

 

O Lupanar

 

Ah! Por que monstruosíssimo motivo

Prenderam para sempre, nesta rede,

Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem poilígamo e lascivo?!

 

Este lugar, moços do mundo, vede:

É o grande bebedeouro coletivo,

Onde os bandalhos, como um gado vivo,

Todas as noites, Vêm matar a sede!

 

É o afrodístico leito do hetairismo

A antecâmara lúbrica do abismo,

Em que é mister que o gênero humano entre.

 

Quando a promiscuidade aterradora

Matar a última força geradora

E comer o último óvulo do ventre!

 

 

 

Idealismo

 

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!

O amor da Humanidade é uma mentira.

É. E é por isso que na minha lira

De amores fúteis poucas vezes falo.

 

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!

Quando, se o amor quea Humanidade inspira

É o amor do sibarita e da hetaíra,

De Messalina e de Sardanapalo?!

 

Pois é mister que, para o amor sagrado,

O mundo fique imaterializado

-- Alavanca desviada do seu futuro --

 

E haja só amizade verdadeira

Duma caveira para outra caveira,

Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

 

 

 

Último credo

 

Como ama o homem adúltero o adultério

E o ébrio a garrafa tóxica de rum,

Amo o coveiro -- este ladrão comum

Que arrasta a gente para o cemitério!

 

É o transcendentalíssimo mistério!

É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,

É a morte, é esse danado número Um

Que matou Cristo e que matou Tibério!

 

Creio, como o filósofo mais crente,

na generalidade descrente

Com que a substância cósmica evolui...

 

Creio, perante a evolução imensa,

Que o homem universal de amanhã vença

O homem particular eu que ontem fui!

 

 

 

O caixão fantástico

 

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,

Cinzas, caixas cranianas, cartilagens

Oriundas, como os sonhos dos selvagens,

De aberratórias abstrações abstrusas!

 

Nesse caixão iam, talvez as Musas,

Talvez meu Pai! Hoffmânicas viagens

Enchiam meu encéfalo de imagens

As mais contraditórias e confusas!

 

A energia monística do Mundo,

À meia-noite, penetrava fundo

No meu fenomenal cérebro cheio...

 

Era tarde! Fazia muito frio.

Na rua apenas o caixão sombrio

Ia continuando o seu passeio!

 

 

 

Solilóquio de um visionário

 

Para desvirginar o labirinto

Do velho e metafísico Mistério,

Comi meus olhos crus no cemitério,

Numa antropofagia de faminto!

 

A digestão desse manjar funéreo

Tornado sangue transformou-me o instinto

De humanas impressões visuais que eu sinto

Nas divinas visões do íncola etéreo!

 

Vestido de hidrogênio incandescente,

Vaguei um século, improficuamente,

Pelas monotonias siderais...

 

subi talvez às máximas alturas,

Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,

É necessário que ainda eu suba mais!

 

 

 

A um carneiro morto

 

Misericordiosíssimo carneiro

Esquartejado,  a maldição de Pio

Décimo caia em teu algoz sombrio

E em todo aquele que for seu herdeiro!

 

Maldito seja o mercador vadio

Que te vender as carnes por dinheiro,

pois, tua lã aquece o mundo inteiro

E guarda as carnes dos que estão com frio!

 

Quando a faca rangeu no teu pescoço,

Ao monstro que espremeu teu sangue grosso

Teus olhos -- fontes de perdão -- perdoaram!

 

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,

Se fosses Deus, no Dia de Juízo,

Talvez perdoasses os que te mataram!

 

 

 

Vozes da morte

 

Agora sim! Vamos morrer, reunidos,

Tamarindo de minha desventura,

Tu, com o envelhecimento da nervura,

Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

 

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!

E a podridão, meu velho! E essa futura

Ultrafatalidade de ossatura,

A que nos acharemos reduzidos!

 

Não morrerão, porém, tuas sementes!

E assim, para o Futuro, em diferentes

Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

 

Na multiplicidade dos teus ramos,

Pelo muito que em vida nos amamos,

Depois da morte, inda teremos filhos!

 

 

 

Insânia de um simples

 

Em cismas patológicas insanas,

É-me grato adstringir-me, na hierarquia

Das formas vivas, à categoria

Das organizações liliputianas;

 

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,

Ter o destino de uma larva fria,

Deixar enfim na cloaca mais sombria

Este feixe de células humanas!

 

E enquanto arremedando Éolo iracundo,

Na orgia heliogabálica do mundo,

Ganem todos os vícios de uma vez,

 

Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho

De um delta humilde, apodrecer sozinho

No silêncio de minha pequenez!

 

 

 

Os doentes

 

I

 

Como uma cascavel que se enroscava,

A cidade dos lázaros dormia...

Somente, na metróplole vazia,

Minha cabeça autônoma pensava!

 

Mordia-me a obsessão má de que havia,

Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,

Um fígado doente que sangrava

E uma garganta órfã que gemia!

 

Tentava compreender com as conceptivas

Funções do encéfalo as substâncias vivas

Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...

 

E via em mim, coberto de desgraças,

O resultado de bilhões de raças

Que há muito desapareceram!

 

II

 

Minha angústia feroz não tinha nome.

Ali, na urbe natal do Desconsolo,

Eu tinha de comer o último bolo

Que Deus fazia para a minha fome!

 

Convulso, o vento entoava um pseudosalmo.

Contrastando, entretanto, com o ar convulso

A noite funcionava como um pulso

Fisiologicamente muito calmo.

 

Caíam sobre os meus centros nervosos,

Como os pingos ardentes de cem velas,

O uivo desenganado das cadelas

E o gemido dos homens bexigosos.

 

Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!

Mas, em cima de um túmulo, um cachorro

Pedia para mim água e socorro

À comiseração dos transeuntes!

 

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro

Reboava. Além jazia os pés da serra,

Criando as superstições de minha terra,

A queixada específica de um burro!

 

Gordo adubo de agreste urtiga brava,

Benigna água, magnânima e magnífica,

Em cuja álgida unção, branda e beatífica,

A Paraíba indígena se lava!

 

A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo

E a câmara odorífera dos sumos

Absorvem diariamente o ubérrimo húmus

Que Deus espalha à beira do seu tálamo!

 

Nos de teu curso desobstruídos trilhos,

Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,

O hidrogênio e o oxigênio que tu choras

Pelo falecimento dos teus filhos!

 

Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,

A incógnita psique das massas mortas

Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,

Na esteira igualitária do teu leito!

 

O vento continuava sem cansaço

E enchia com a fluidez do eólico hissope

Em seu fantasmagórido galope

A abundância geométrica do espaço.

 

Meu ser estacionava, olhando os campos

Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos

Reduziam os Céus sérios e rudos

A uma epiderme cheia de sarampos!

 

III

 

Dormia embaixo, com a promíscua véstia

No enbotamento crasso dos sentidos,

A comunhão dos homens reunidos

Pela camaradagem da moléstia.

 

Feriam-me o  nervo óptico e a retina

Aponevroses e tendões de Aquiles,

Restos repugnantíssimos de bílis,

Vômitos impregnados de ptialina.

 

Da degenerescência étnica do Ária

Se escapava, entre estrépitos e estouros,

Reboando pelos séculos vindouros,

O ruído de uma tosse hereditária.

 

OH! desespero das pessoas tísicas,

Adivinhando o frio que há nas lousas,

Maior felicidade é a destas cousas

Submetidas apenas às leis físicas!

 

Estas, por mais que os cardos grandes rocem

Seus corpos brutos, dores não recebem;

Estas dis bacalhaus o óleo não bebem,

Estas não cospem sangue, estas não tossem!

 

Descender dos macacos catarríneos,

Cair doente e passar a vida inteira

Com a boca junto de uma escarradeira,

Pintando o chão de coágulos sangüíneos!

 

Sentir, adstritos ao quimiotropismo

Erótico, os micróbios assanhados

Passearem, como inúmeros soldados,

Nas cancerosidades do organismo!

 

Falar somente uma linguagem rouca.

Um português cansado e incompreensível,

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita sangue pela boca!

 

Expulsar, aos bocados, a existência

Numa bacia autômata de barro,

Alucinado, vendo em cada escarro

O retrato da própria consciência!

 

Querer dizer a angústia de que é pábulo

E com a respiração já muito fraca

Sentir como que a ponta de uma faca,

Cortanto as raízes do último vocábulo.

 

Não haver terapêutica que arranque

Tanta opressão como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito

A máquina pneumática de Bianchi!

 

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba

A erguer, como um cronômetro gigante

Marcando a transição emocionante

Do lar materno para a catacumba!

 

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,

Consagrando vossa última fonética

A uma recitação de mesereres.

 

Antes levardes ainda uma quimera

Para a garganta omnívora das lajes

Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes

Contra a dissolução que vos espera!

 

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,

Consoante a minha concepção vesânica,

É a alfândega, onde toda a vida orgânica

Há de pagar um dia o último imposto!

 

IV

 

Começara a chover. Pelas algentes

Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas

Encharcava os buracos das feridas,

Alagava a medula dos Doentes!

 

Do fundo do meu trágico destino,

Onde a Resignação os braços cruza,

Saía, com o vexame de uma fusa,

A mágoa gaguejada de um cretino.

 

Aquele ruído obscuro de gagueira

Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda,

Vinha da vibração bruta da corda

Mais recôndita da alma brasileira!

 

Aturdia-me a tétrica miragem

De que, naquele instante, no Amazonas,

Fedia, entregue a vísceras glutonas,

A carcaça esquecida de um selvagem.

 

A civilização entrou na taba

Em que ele estava. O gênio de Colombo

Manchou de opróbrios a alma do mazombo,

Cuspiu na cova do morubixaba!

 

E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,

Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,

Esse achincalhamento do progresso

Que o anulava na crítica da História!

 

Como quem analisa uma apostema,

De repente, acordando na desgraça,

Viu toda a podridão de sua raça...

Na tumba de Iracema!...

 

Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,

Exercia sobre ela ação funesta

Desde o desbravamento da floresta

à ultrajante invenção do telefone.

 

E sentia-se pior que um vagabundo

Microcéfalo vil que a espécie encerra,

Desterrado na sua própria terra,

Diminuído na crônica do mundo!

 

A hereditariedade dessa pecha

Seguiria seus filhos. Dora em diante

Seu povo tombaria agonizante

Na luta da espingarda contra a flecha!

 

Veio-lhe então como à fêmea vêm antojos.

Uma desesperada ânsia improfícua

De estrangular aquela gente iníqua

Que progredia sobre os seus despojos!

 

Mas, diante a xantocróide raça loura,

Jazem, caladas, todas as inúbias,

E agora, sem difíceis nuanças dúbias,

Com uma clarividência aterradora,

 

Em vez da prisca tribo e indiana tropa

A gente deste século, espantada,

Vê somente a caveira abandonada

De uma raça esmagada pela Europa!

 

V

 

Era a hora em que arrastados pelos ventos,

Os fantasmas hamléticos dispersos

Atiram na consciência dos perversos

A sombra dos remorsos famulentos.

 

As mães sem coração rogavam pragas

Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,

Batia com o pentágono dos dedos

Sobre um fundo hipotético de chagas!

 

Diabólica dinâmica daninha

Oprimia meu cérebro indefeso

Com a força onerosíssima de um peso

Que eu não sabia mesmo de onde vinha.

 

Perfurava-me o peito a áspera pua

do desânimo negro que me prostra,

E quase a todos os momentos mostra

Minha caveira aos bêbedos da rua.

 

Hereditariedades politípicas

Punham na minha boca putrescível

Interjeições de abracadabra horrível

E os verbos indignados das Filípicas.

 

Todos os vocativos dos blasfemos,

No horror daquela noite monstruosa,

Maldiziam, com voz estentorosa,

A peçonha inicial de onde nascemos.

 

Como que havia na ânsia de conforto

De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,

Uma necessidade de suicídio

E um desejo incoercível de ser morto!

 

Naquela angústia absurda e tragicômica

Eu chorava, rolando sobre o lixo,

Com a contorção neurótica de um bicho

Que ingeriu 30 gramas de noz-vômica.

 

E, como um homem doido que se enforca,

Tentava, na terráquea superfície,

Consubstanciar-me todo com a imundície,

Confundir-me com aquela coisa porca!

 

Vinha, às vezes, porém, o anelo instável

De, com o auxílio especial do osso masséter

Mastigando homeomérias neutras de éter

Nutrir-me da matéria imponderável.

 

Anelava ficar um dia, em suma,

Menor que o anfióxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,

Sem diferenciação de espécie alguma.

 

Era (nem sei em síntese o que diga)

Um velhíssimo instinto atávico, era

A saudade inconsciente da monera

Que havia sido minha mãe antiga.

 

Com o horror tradicional da raiva corsa

Minha vontade era, perante a cova,

Arrancar do meu próprio corpo a prova

Da persistência trágica da força.

 

A pragmática má de humanos usos

Não compreende que a Morte que não dorme

É a absorção do movimento enorme

Na dispersão dos átomos difusos.

 

Não me incomoda esse último abandono

Se a carne individual hoje apodrece

Amanhã, como Cristo, reaparece

Na universalidadej do c arbono!

 

A vida vem do éter que se condensa

Mas o que mais no Cosmos me entusiasma

É a esfera microscópica do plasma

Fazer a luz do cérebro que pensa.

 

Eu voltarei, cansado, da árdua liça

À substância inorgânica primeva

De onde, por epigênese, veio Eva

E a stirpe radiolar chamada Actissa.

 

Quando eu for misturar-me com as violetas

Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra

Reviverá, dando emoção à pedra

Na acústica de todos os planetas!

 

VI

 

À álgida agulha, agora, alva, a saraiva

Caindo, análoga era... Um cão agora

Punha a atra língua hidrófoba de fora

Em contrações miológicas de raiva.

 

Mas, para além, entre oscilantes chamas,

Acordavam os bairros da luxúria...

As prostitutas, doentes de hematúria,

Se extenuavam nas camas.

 

Uma, ignóbil, derreada de cansaço,

Quase que escangalhada pelo vício,

Cheirava com prazer no sacrifício

A lepra má que lhe roía o braço!

 

E ensangüentava os dedos da mão nívea

Com o sentimento gasto e a emoção pobre,

Nessa alegria bárbara que cobre

Os saracoteamentos da lascívia...

 

De certo, a perversão de que era presa

o sensorium daquela prostituta

Vinha da adaptação quase absoluta

À ambiência microbiana da baixeza!

 

Entanto, virgem fostes, e, quando o éreis,

Não tínheis ainda essa erupção cutânea,

Nem tínheis, vítima última da insânia,

Duas mamárias glândulas estéreis!

 

Ah! Certamente não havia ainda

Rompido, com violência, no horizonte,

O sol malvado que secou a fonte

De vossa castidade agora finda!

 

Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,

Estendestes ao mundo, até que, à-toa,

Fostes vender a virginal coroa

Ao primeiro bandido do arrabalde.

 

E estais velha! -- De vós o mundo é farto,

E hoje, que a sociedade vos enxota,

Somente as bruxas negras da derrota

Freqüentam diariamente vosso quarto!

 

prometem-vos (quem sabe?!) entre os ciprestes

Longe da mancebia dos alcouces,

Nas quietudes nirvânicas mais doces

O noivado que em vida não tivestes!

 

VII

 

Quase todos os lutos conjugados,

Como uma associação de monopólio,

Lançavam pinceladas pretas de óleo

Na arquitetura arcaica dos sobrados.

 

Dentro da noite funda um braço humano

Parecia cavar ao longe um poço

Para enterrar minha ilusão de moço,

Como a boca de um poço artesiano!

 

Atabalhoadamente pelos becos,

Eu pensava nas coisas que perecem,

Desde as musculaturas que apodrecem

À ruína vegetal dos lírios secos.

 

Cismava no propósito funéreo

Da mosca debochada que fareja

O defunto, no chão frio da igreja,

E vai depois levá-lo ao cemitério!

 

E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,

Sentia, na craniana caixa tosca,

A racionalidade dessa mosca,

A consciência terrível desse inseto!

 

Regougando, porém, argots e aljâmias,

Como quem nada encontra que o perturbe,

A energúmena gei dos ébrios da urbe

Festejava seu sábado de infâmias.

 

A estática fatal das paixões cegas,

Rugindo fundamente nos neurônios,

Puxava aquele povo de demônios

Para a promiscuidade das adegas.

 

E a ébria turba que escaras sujas masca,

À falta idiossincrásica de escrúpulo,

Absorvia com gáudio absinto, lúpulo

E outras substâncias tóxicas da tasca.

 

O ar ambiente cheirava a ácido acético,

Mas, de repente, com o ar de quem empesta,

Apareceu, escorraçando a festa,

A mandíbula inchada de um morfético!

 

Saliências polimórficas vermelhas,

Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,

Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo

Tamanho aberratório das orelhas.

 

O fácies do morfético assombrava!

-- Aquilo era uma negra eucaristia,

Onde minh’alma inteira surpreendia

A Humanidade que se lamentava!

 

Era todo o meu sonho, assim inchado,

Já podre, que a morféia miserável

Tornava às impressões táteis, palpável,

Como se fosse um corpo organizado!

 

VIII

 

Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,

E o cemitério, em que eu entrei adrede,

Dá-me a impressão de um boulevard que fede,

Pela degradação dos que o povoam.

 

Quanta gente, roubada à humana coorte

Morre de fome, sobre a palha espessa,

Sem ter, como Ugolino, uma cabeça

Que possa mastigar na hora da morte

 

E nua, após baixar ao caos budista,

Vem para aqui, nos braços de um canalha

porque o madapolão para a mortalha

Custa 1$200 ao lojista!

 

Que resta das cabeças que pensaram?!

E afundado nos sonhos mais nefastos,

Ao pegar num milhão de miolos gastos,

Todos os meus cabelos se arrepiaram.

 

Os evolucionistas benfeitores

Que por entre os cadáveres caminham,

iguais a irmãs de caridade, vinham

Com a podridão dar de comer às flores!

 

Os defuntos então me ofereciam

Com as articulações das mãos inermes,

Num prato de hospital, cheio de vermes,

Todos os animais que apodreciam!

 

 É possível que o estômago se afoite

(Muito embora contra isto a alma se irrite)

A cevar o antropófago apetite,

Comendo carne humana, à meia-noite!

 

Com uma ilimitadíssima tristeza,

Na impaciência do estômago vazio,

Eu devorava aquele bolo frio

Feito das podridões da Natureza!

 

E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,

Vendo passar com as túnicas obscuras,

As escaveiradíssimas figuras

Das negras desonradas pelos brancos;

 

Pisando, como quem salta, entre fardos,

Nos corpos nus das moças hotentotes

Entregues, ao clarão de alguns archotes,

À sodomia indigna dos moscardos;

 

Eu maldizia o deus de mãos nefandas

Que, transgredindo a igualitária regra

Da Natureza, atira a raça negra

Ao contubérnio diário das quitandas!

 

Na evolução de minha dor grotesca,

Eu mendigava aos vermes insubmissos

Como indenização dos meus serviços,

O benefício de uma cova fresca.

 

Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,

Como o íncola do pólo ártico, às vezes,

Absorve, após a noite de seis meses,

Os raios caloríficos da aurora.

 

Nunca mais as goteiras cairiam

Como propositais setas malvadas,

No frio matador das madrugadas,

Por sobre o coração dos que sofriam!

 

Do meu cérebro à absconsa tábua rasa

Vinha a luz restituir o antigo crédito,

Proporcionando-me o prazer inédito,

De quem possui um sol dentro de casa.

 

Era a volúpia fúnebre que os ossos

Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,

À apreensão fisiológica do faro

O odor cadaveroso dos destroços!

 

IX

 

O inventário do que eu já tinha sido

Espantava. Restavam só de Augusto

A forma de um mamífero vetusto

E a cerebralidade de um vencido!

 

O gênio procriador da espécie eterna

Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,

Uma sobrevivência de Sidarta,

Dentro da filogênese moderna;

 

E arrancara milhares de existências

Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,

Ia arrastando agora a alma infecunda

Na mais triste de todas as falências.

 

No céu calamitoso de vingança

Desagregava, déspota e sem normas,

O adesionismo biôntico das formas

Multiplicadas pela lei da herança!

 

A ruína vinha horrenda e deletéria

Do subsolo infeliz, vinha de dentro

Da matéria em fusão que ainda há no centro,

Para alcançar depois a periferia!

 

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!

Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos

Tinham aspectos de edifícios mortos,

Decompondo-se desde os alicerces!

 

A doença era geral, tudo a extenuar-se

Estava. O Espaço abstrato que não morre

Cansara... O ar que, em colônias fluídas, corre,

Parecia também desagregar-se!

 

 O prodromos de um tétano medonho

Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,

Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,

O começo magnífico de um sonho!

 

Entre as formas decrépitas do povo,

Já batiam por cima dos estragos

A sensação e os movimentos vagos

Da célula inicial de um Cosmos novo!

 

O letargo larvário da cidade

Crescia. Igual a um parto, numa furna,

Vinha da original treva noturna,

o vagido de uma outra Humanidade!

 

E eu, com os pés atolados no Nirvana,

Acompanhava, com um prazer secreto,

A gestação daquele grande feto,

Que vinha substituir a Espécie Humana!

 

 

 

Asa de corvo

 

Asa de corvos carniceiros, asa

De mau agouro que, nos doze meses,

Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes

O telhado de nossa própria casa...

 

Perseguido por todos os reveses,

É meu destino viver junto a esa asa,

Como a cinza que vive junto à brasa,

Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

 

É com essa asa que eu faço este soneto

E a indústria humana faz o pano preto

Que as famílias de luto martiriza...

 

É ainda com essa asa extraordinária

Que a Morte -- a costureira funerária --

Cose para o homem a última camisa!

 

 

 

Uma noite no Cairo

 

Noite no Egito. O céu claro e produndo

Fulgura. A rua é triste. A Lua cheia

Está sinistra, e sobre a paz do mundo

A alma dos Faraós anda e vagueia.

 

Os mastins negros vão ladrando à lua...

O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua

Passa cantando uma mulher hebraica.

 

O Egito é sempre assim quando anoitece!

Às vezes, das pirâmides o quedo

E atro perfil, exposto ao luar, parece

Uma sombria interjeição de medo!

 

Como um contraste àqueles mesereres,

Num quiosque em festa alegre turba grita,

E dentro dançam homens e mulheres

Numa aglomeração cosmopolita.

 

Tonto do vinho, um saltimbanco da Ásia,

Convulso e roto, no apogeu da fúria,

Executando evoluções de razzia

Solta um brado epilético de injúria!

 

Em derredor duma ampla mesa preta

-- Última nota do conúbio infando --

Vêem-se dez jogadores de roleta

Fumando, discutindo, conversando.

 

Resplandece a celeste superfície.

Dorme soturna a natureza sábia...

Embaixo, na mais próxima planície,

Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.

 

Vaga no espaço um silfo solitário.

Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo...

Apenas como um velho stradivário,

Soluça toda a noite a água do Nilo!

 

 

 

O Martírio do artista

 

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,

A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,

Busca exteriorizar o pensamento

Que em suas fronetais células guarda!

 

Tarda-lhe a Idéia!  A inspiração lhe tarda!

E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,

Como o soldado que rasgou a farda

No desespero do último momento!

 

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...

É como o paralítico que, à míngua

Da própria voz e na que ardente o lavra

 

Febre de em vão falar, com os dedos brutos

Para falar, puxa e repuxa a língua,

E não lhe vem  à boca uma palavra!

 

 

 

Duas estrofes

 

(À memória de João de Deus)

 

Ahi! ciechi! il tanto affaticar che giova?

Tutti torniamo alla gran  madre  antica

E il nostro nome appena si ritrova.

Petrarca

 

A queda do teu lírico arrabil

De um sentimento português ignoto

Lembra Lisboa, bela como um brinco,

Que um dia no ano trágico de mil

E setecentos e cinqüenta e cinco,

Foi abalada por um terremoto!

 

A água quieta do Tejo te abençoa.

Tu representas toda essa Lisboa

De glórias quase sobrenaturais,

Apenas com uma diferença triste,

Com a diferença que Lisboa existe

E tu, amigo, não existes mais!

O MAR, A ESCADA E O HOMEM

 

“Olha agora, mamífero inferior,

“À luz da espicurista ataraxia,

“O fracasso de tua geografia

“E do teu escafandro esmiuçador!

 

“Ah! Jamais saberás ser superior,

“Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,

“Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia

“Voando ao vento o vastíssimo vapor.

 

“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”

E a verticalidade da Escada íngreme:

“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”

 

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,

Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços

No pandemônio aterrador do Caos!

 

 

 

Decadência

 

Iguais às linhas perpendiculares

Caíram, como cruéis e hórridas hastas,

Nas suas 33 vértebras gastas

Quase todas as pedras tumulares!

 

A frialdade dos círculos polares,

Em sucessivas atuações nefastas,

Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,

Estragara-lhe os centros medulares!

 

Como quem quebra o objeto mais querido

E começa a apanhar piedosamente

Todas as microscópicas partículas,

 

Ele hoje vê que, após tudo perdido,

Só lhe restam agora o último doente

E a armação funerária das clavículas!

 

 

 

Ricordanza della mia gioventú

 

A minha ama-de-leite Guilhermina

Furtava as moedas que o Doutor me dava.

Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...

Via naquilo a minha própria ruína!

 

Minha ama, então, hipócrita, afetava

Susceptibilidade de menina:

“-- Não, não fora ela! --“ E maldizia a sina,

Que ela absolutamente não furtava.

 

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,

Que a mim somente cabe o furto feito...

Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha.

 

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,

Eu furtei mais, porque furtei o peito

Que dava leite para a tua filha!

 

 

 

A um mascarado

 

Rasga essa máscara ótima de seda

E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos...

É noite, e, à noite, a escândalos e incestos

É natural que o instinto humano aceda!

 

Sem que te arranquem da garganta queda

A interjeição danada dos protestos,

Hás de engolir, igual a um porco, os restos

Duma comida horrivelmente azeda!

 

A sucessão de hebdômadas medonhas

Reduzirá os mundos que tu sonhas

Ao microcosmos do ovo primitivo...

 

E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,

Terás somente uma vontade cega

E uma tendência obscura de ser vivo!

 

 

 

Vozes de um túmulo

 

Morri! E a Terra -- a mãe comum -- o brilho

Destes meus olhos apagou!... Assim

Tântalo, aos reais convivas, num festim,

Serviu as carnes do seu próprio filho!

 

Por que para este cemitério vim?!

Por que?! Antes da vida o angusto trilho

Palmilhasse, do que este que palmilho

E que me assombra, porque não tem fim!

 

No ardor do sonho que o fronema exalta

Construí de orgulho ênea pirâmide alta...

Hoje, porém, que se desmoronou

 

A pirâmide real do meu orgulho,

Hoje que apenas sou matéria e entulho

Tenho consciência de que nada sou!

 

 

 

Contrastes

 

A antítese do novo e do obsoleto,

O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,

O que o homem ama e o que o homem abomina,

Tudo convém para o homem ser completo!

 

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,

Uma feição humana e outra divina

São como a eximenina e a endimenina

Que servem ambas para o mesmo feto!

 

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!

Por justaposição destes contrastes,

Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

 

Às alegrias juntam-se as tristezas,

E o carpinteiroque fabrica as mesas

Faz também os caixões do cemitério!...

 

 

 

Gemidos de arte

 

I

 

Esta desilusão que me acabrunha

É mais traidora do que o foi Pilatos!...

Por causa disto, eu vivo pelos matos,

Magro, roendo a substância córnea de unha.

 

Tenho estremecimentos indecisos

E sinto, haurindo o tépido ar sereno,

O mesmo assombro que sentiu Parfeno

Quando arrancou os olhos de Dionisos!

 

Em giro e em redemoinho em mim caminham

Ríspidas mágoas estranguladoras,

Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras

Brônzeas, também gira e redemoinham.

 

Os pães -- filhos legítimos dos trigos --

Nutrem a geração do Ódio e da Guerra.

Os cachorros anônimos da terra

São talvez os meus únicos amigos!

 

Ah! Por que desgraçada contingência

À híspida aresta sáxea áspera e abrupta

Da rocha brava, numa ininterrupta

Adesão, não prendi minha existência?!

 

Por que Jeová, maior do que Laplace,

Não fez cair o túmulo de Plínio

Por sobre todo o meu raciocínio

Para que eu nunca mais raciocinase?!

 

Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles

Carinhos, com que guarda meus sapatos,

Por que me deu consciência dos meus atos

Para eu me arrepender de todos eles?!

 

Quisera antes, mordendo glabros talos,

Nabucodonosor ser do Pau d’Arco,

Beber a acre e estagnada água do charco,

Dormir na manjedoura com os cavalos!

 

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.

Dorme num leito de feridas, goza

O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,

Beija a peç

Pasted: Jun 27, 2008, 7:10:08 pm
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